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domingo, outubro 28, 2007

Rui de Morais


Dêem-me uma parede branca!
Quero reescrever-me
desde o início
Quero-me noutra história
em que eu invente o princípio
sem deixar nada ao acaso
Quero saber o que faço
e para quê
Quero ser dono do tempo, do espaço
desenhar as personagens
a cruzar no meu caminho
Quero ser o narrador
o dono, rei e senhor
de uma vida desenhada
a régua e esquadro
por - para - mim

Rui de Morais, "Reinscrição desenhada", in Caminhante, inédito, 2007.

Daniel Faria (2)


Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito,
[acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

Daniel Faria, "Do ciclo das intempéries - 1", in Poesia, Quasi, 2003.

Na garganta versos


Eu própria me distingo ao longe
deitada como estou sobre o dorso
a dizer que a língua me asfixia
cerceada por metáforas.
Na garganta versos,
tenazes nos pulsos impulsivos.

Fiama Hasse Pais Brandão, "Amo o ininteligível", in Obra Breve, Assírio & Alvim, 2006.

sexta-feira, outubro 26, 2007

A porta

Daniel Faria, alguém que só viveu 28 anos e ainda assim teve tempo para deixar uma obra que é uma surpresa de espanto. Descobri-o há pouco. Admirável. Leio, releio.


A porta mora à espera
De perfil se ensombra
E descansa

O degrau é paciência
O umbral anúncio
O silêncio é o lugar
Onde baterão as mãos


(Daniel Faria, "Explicação das Casas", uma das partes da "Explicação das Árvores e de Outros Animais", in Poesia, Edições Quasi, 2003)

David Mourão-Ferreira


Ah Quem te contivesse
ó diverso Universo
em três versos


David Mourão-Ferreira, "Entre a Sombra e o Corpo", 30, in Obra Poética, Presença, 1988.

quinta-feira, outubro 25, 2007

Blimunda Sete-Luas

Releio Saramago. E páro naquela passagem plena de naturalidade, de instinto, de tranquilidade. Uma beleza. O sangue da vida. O sangue da morte. O gesto da mulher sacerdotisa. Blimunda Sete-Luas, que acabará por reter a vontade de Baltasar Sete-Sóis, que "não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda." Mas isso foi depois.

(...)
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.
(...)


José Saramago, in Memorial do Convento, ACJ, 2000
Foto: Isabel Solano