Páginas

segunda-feira, dezembro 31, 2007

Intersecção sem razão e nada


cresce o espaço
da intersecção
na razão contrária
ao tempo

de todos os ângulos
se vê apenas:
dois pontos
parágrafo
- travessão

e aos costumes disse
nada

Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

domingo, dezembro 30, 2007

Sentir? Sinta quem lê!

Hoje mesmo, à tarde, na Brasileira do Chiado, a respirar o cheiro da cidade. Em muito boa companhia: ao meu lado, Fernando Pessoa, um fingidor.


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço,
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre no meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa, in Antologia Poética, RBA, 1996
Foto: Isabel Solano

sábado, dezembro 29, 2007

A rosa do possível

"As Palavras" de António Ramos Rosa deixam-me sem palavras.


Toda a palavra aspira a ser a rosa do possível
para além da vertigem das raízes obscuras
Se a verdade é mais côncava que convexa
ela terá que ter os sinuosos veios da sombra

Para que essa rosa floresça é preciso subir
a um patamar mais alto do que o fundo obsceno
em que vibra uma rede inextricável
de relações de dúvidas de hipóteses

Para que ela alcance a sua graça aérea
e ganhe a suave cor de um sangue iluminado
é preciso oferecer-lhe a simplicidade do azul
e as claras perspectivas de uma janela aberta

António Ramos Rosa, in As Palavras, Campo das Letras, 2001
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Poetas arautos


Atrás das grades em que estavam prisioneiros
vi poemas alucinados de concretas certezas
em recados dados a leitores incautos

Ah como me fazem rir esses poetas arautos
da desgraça alheia tão arrogantemente certos
quando de si próprios o saber escasseia

Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Nada em comum com as gaivotas


TARDE

O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido, Caminho, 2003
Foto: Isabel Solano

terça-feira, dezembro 25, 2007

Pensar é estar doente dos olhos

Alberto Caeiro e um dos meus poemas preferidos d'"O Guardador de Rebanhos"; sei ter o pasmo essencial, pensar é estar doente dos olhos, eu não tenho filosofia: tenho sentidos... - a arte de ver/sentir e a recusa do vício de pensar. Já o disse aqui e repito: Caeiro é o meu guardador também.


II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro, in Fernando Pessoa, "O guardador de rebanhos", Antologia Poética, RBA, 1996.
Foto: Isabel Solano



English translation found in this blog: Poets of the world


II

My gaze is clear like a sunflower.
It is my custom to walk the roads
Looking right and left
And sometimes looking behind me,
And what I see at each moment
Is what I never saw before,
And I’m very good at noticing things.
I’m capable of feeling the same wonder
A newborn child would feel
If he noticed that he’d really and truly been born.
I feel at each moment that I’ve just been born
Into a completely new world…

I believe in the world as in a daisy,
Because I see it. But I don’t think about it,
Because to think is to not understand.
The world wasn’t made for us to think about it
(To think is to have eyes that aren’t well)
But to look at it and to be in agreement.

I have no philosophy, I have senses…
If I speak of Nature it’s not because I know what it is
But because I love it, and for that very reason,
Because those who love never know what they love
Or why they love, or what love is.

To love is eternal innocence,
And the only innocence is not to think…

© Translation: 2006, Richard Zenith
From: A Little Larger Than the Entire Universe: Selected Poems
Publisher: Penguin, New York, 2006

domingo, dezembro 23, 2007

Quero tudo quanto tem um brilho

Este livrinho de Pedro Strecht não só tem belíssimos poemas, como fotografias muito bonitas do autor, a preto e branco.


só nos descobrimos completamente
com o que alguém reflecte de nós

alguma ciência do adeus repete-se
sempre que cada dia chega ao fim
por isso quero tanto sobrepor à morte
tudo quanto tem vida um brilho
como os que vou conhecendo e amparo
passando calmamente aqui à frente
deixando o tempo ao lume a aquecer
nem eles sabem os encantos que têm

e é assim que ouço mais vozes
que ardentemente procuram
o amor
onde está que é feito dessas letras simples
há tantas coisas complicadas cheias de nada
e morrem morrem os últimos românticos
um a um caem ou deixam-se abater
calam-se as suas músicas apagam-se as letras
tenho pena e as saudades congelam
ao ritmo a que secam os campos sem chuva

(...)

Pedro Strecht, in "Escrevo-te e é tudo", 1979 Outros Poemas, edição de autor, 2002
Foto: Isabel Solano

terça-feira, dezembro 18, 2007

Na orla do mar vou colher

Esta antologia velhinha que fui descobrir esquecida é um autêntico guarda-jóias, e bem recheado. Poesias escolhidas por Hortense César de José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio. Revendo o meu arquivo de fotografias, já tinha escolhido a que me apeteciar visitar hoje com palavras, estas de Eugénio de Andrade.


NA ORLA DO MAR

Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
-e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo-
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,
onde o corpo é alma.

Eugénio de Andrade, in Antologia Poética, Porto Editora, 1974
Foto: Isabel Solano

O que apenas vê o que não ilumina

Continuo a reler José Gomes Ferreira. Viciante. Embriaga de simplicidade, emoção e verdade.


Poeta o que é?
Um homem que leva
o facho da treva
no fundo da mina
-mas apenas vê
o que não ilumina.

José Gomes Ferreira, in "Poesia III", Antologia Poética, Porto Editora, 1974.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Avesso


Já não sei dizer o sol
fugi-me do universo
avesso a todos os sistemas
caóticos ou exactos

vagueio agora no vácuo
em pensamento disforme
numa leveza de peso
sem gravidade

E lá em baixo
a Terra dorme

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

Mar, lágrima de ninguém

Releio José Gomes Ferreira. E novamente me espanto com a força emotiva das suas palavras.


Cala-te mar!

Não tentes cobrir a minha voz
com o furor da tua boca de espuma
onde nem há rogos de náufragos nos rasgões do vento.

Cala-te, mar!

Não me obrigues a rugir mais alto do que tu
numa indignação de tempestade de silêncio
que lança raios dos homens para as nuvens.

(...)

O que queres é berrar, berrar uma dor qualquer sem sentido
para cobrir a minha voz de protesto de espada
-terrível como um grito insuportável de doer.

O que queres é berrar
-mar inútil! Mar enorme! Mar que dás a volta ao mundo
e és tão pequeno ao pé destas lágrimas
que me caem dos olhos,
frias e ardentes como balas.

Mar.
Lágrima de ninguém.

José Gomes Ferreira, in "Poesia I", Antologia Poética, Porto Editora, 1974.
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Aracnídeo


o meu coração tem hoje um pulsar aracnídeo

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

terça-feira, dezembro 11, 2007

Porquê?


Porquê o sono
que nunca durmo
De que me escondo
Com quem me cruzo
Sob que escombros
de que futuro
me reencontro
ou me sepulto
Que mar ao longe
Que ruas sulco
Por onde rondo
Que céu Que burgo
este que em sonhos
em vão procuro

David Mourão-Ferreira, in "Numa Lisboa assassinada", Obra Poética, 5ª ed.,Editorial Presença, 2006
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Recanto secreto


Sei de um recanto
lá na margem da ribeira
onde me sento na relva
e fico a ouvir sobre ela
o lento passar do tempo
ao som dos pássaros
e da água corrente

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Estou aqui


AS PALAVRAS-OBJECTOS

Estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usá-las:
mas que uso fazem elas de mim?

Se bato nelas, elas batem em mim
se estou irritada, ameaçam-me
ameaçam ferir-me
fazer-me tropeçar, cair, soçobrar

Mas se estou calma e confio nelas
então elas confiam em mim:
entregam-se
enchem os meus dias
amparam as minhas noites
ternamente
aconchegam-me em suas estruturas

Mas porquê?
porquê?
para quê?

Ana Hatherly, in O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003
Foto: Isabel Solano

Flor ausente


Do meu amor perfeito, flor ausente,
não lembro o rosto nem a voz:

lembro a fadiga sorridente
que havia, ao fim, em cada um de nós.

David Mourão-Ferreira, in "Diário de Praia", Obra Poética, 5ª ed., Editorial Presença, 2006
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Em ruína


Levei as mãos aos olhos para ver
se mesmo em ruína inda existias,
mergulhei no sol os dedos todos,
vêm molhados das águas fatigadas -
o corpo perdia-se frente aos dias.

Eugénio de Andrade, in Matéria Solar, Limiar, 1980
Foto: Isabel Solano

De entesouro

Hoje foi dia de atelier de escrita criativa com as minhas alunas no Centro Cultural de Belém. Sairam textos engraçados. Rui de Morais, Bárbara Pais e Luísa Veríssimo andam sempre comigo. A Luísa foi desta vez quem não resistiu. Só entende quem lá esteve connosco.


De uma borboleta triste
que voava
soltaram-se lágrimas
à minha passagem

uma lágrima
caiu na minha mão

dela fiz o ouro
que entesouro

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Apenas o ouro de uma palavra


Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa,
formosura inclinada sobre a descerrada cinza
e o frio dos retratos.
(...)

Herberto Helder, in "Fonte", Poesia Toda, Assírio e Alvim, 1981
Foto: Isabel Solano