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segunda-feira, novembro 10, 2008

Com o rumor

Like a rumor
Com o rumor da vida, mar adentro,
desperto universos de espanto
em cada murmúrio de búzio.

24/03/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

domingo, novembro 09, 2008

O amor? Nem flor nem fruto

Voluptuous nature
MINUTO

O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
(Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto...)

Fui plantar o coração
no infinito: uma flor...
(Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não!)

O amor? Nem flor nem fruto.
(Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder...)

Foi apenas um minuto:
a fome intensa, tão rara!,
de ser criança, ou morrer...

David Mourão-Ferreira, in Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, II Volume, Edições 70, 1983.
Foto: Isabel Solano

Luar na serra


Mais quente que a luz do dia
o luar já desaperta
o breve vestido de lã
que Novembro deu à serra
hoje cedo pela manhã.

Enquanto a noite avança,
vadia, em fogo brando,
o amor inebriando.

1/11/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Na minha boca


Vou-me encontrando por aí
nas bocas dos poetas
que leio em voz alta
para dizer à boca cheia
que sinto esses sabores
das palavras dos versos
das bocas dos poetas
na minha boca.

20/03/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Wise Wolf

domingo, setembro 28, 2008

Perfume
























E à noite, as mãos cansadas
ainda vieram deixar-me pelo corpo
esse perfume docemente intenso
que tem a madeira recém-cortada.

28/09/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Utopia


UTOPIA

Um querer viver tudo e não poder,
por tanto tempo em nada transformado
se ter assim escapado pelo passado.
Quanta promessa de amanhã fazer...

Como a semente, ao ser lançada ao chão,
Dar a vida pela vida, até à morte,
Florescer só quando chega a noite
do tempo que fez ser jovem em vão.

Desejo inútil de mais caminho haver!
Se o mundo ainda está por conhecer,
é absurdo partir quase à chegada.

Resta a certeza, agora já tardia,
de tanto desejo ser utopia.
De tudo querer viver ser viver nada.

Bárbara Pais, in Bárbara Pais, Isabel Solano, Luísa Veríssimo e Rui de Morais: Poemas Sem Data, inédito, s/d
Fotografia: Isabel Solano

Gotas e candeias puras


FONTE/II

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

Herberto Helder, in Miguel Veiga, Os Poemas da Minha Vida, 2ª ed., Público, 2005.
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, setembro 26, 2008

Ó mar salgado!


MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernado Pessoa, in Mensagem, Oficina do Livro, 2006.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, setembro 10, 2008

Acordar


desnudo palavras ainda no ouvido.
dum tempo longe, quando julgava
conhecer-lhes o sentido.
acordaram-me o relógio
(aos gritos) (em sussurros).
desfeitos os muros da memória,
fizeram-me embater em mim,
de ímpeto brusco. mas nem assim
eu conheci o fim da história.

13/3/2008

Bárbara Pais, in Não Sei Falar de Mim, inédito, 2008
Fotografia: Isabel Solano

Pontos na estrada


Rodavam em sentidos opostos
nas faixas da auto-estrada
desconhecendo-se os rostos

sul-norte norte-sul

num instante se cruzaram
seguindo depois do encontro
ao desencontro de nada

sul-norte norte-sul

há encontros-desencontros
em cada ponto da rodagem
estendida a linha faz-se a estrada

sul-norte norte-sul

Rui de Morais, in Do Novo Velho Caminho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

De moradas


BREVE ENCONTRO

Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida

Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas, Caminho, 2004
Foto: Isabel Solano

sábado, agosto 30, 2008

Ardem maçãs na tarde


TARDE

Ardem maçãs na tarde aberta
sobre o pomar do teu passado

Conta quem foste Recomeça
com outros frutos o relato

Sejam romãs É uma festa
ir decifrar-te bago a bago

Conta em que tronco as tuas pernas
viram primeiro a luz de um rapto

Ou projectaram ser a hera
tocando frutos lá no alto

Conta quem foste Nunca 'squeças
que só em frutos te translado

David Mourão-Ferreira, in "Órfico ofício", Obra Poética, 5ª ed., Editorial Presença, 2006
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, agosto 08, 2008

Os seus gestos ordenados e frios


Eu contarei a beleza das estátuas -
Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios

Sem que ninguém desvende outros segredos
Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido, 4ª ed., Caminho, 2005.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, agosto 06, 2008

Espelhos e cravos


Anda por aí um outono de espelhos
- pressinto-o sem para ele olhar -
onde não cabe o vermelho dos cravos
que jamais deixarei de semear.

05/08/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

O prisioneiro


Começou de madrugada a obra
na mesma noite sonhada,
tijolo após tijolo,
colados pela argamassa
ligada pelas próprias mãos.
Subiu paredes de suor,
venceu cansaços,
ignorou abraços
de quem por ali passava
e o queria consolar.
Forjou barras inquebráveis,
grossas como os punhos
que nunca fraquejaram,
subiu um telhado simples,
que servisse apenas a função
de rematar a construção.
A obra ficou terminada;
finalmente chegara a Hora,
não perdeu tempo a olhar.
Empurrou a porta pesada,
entrou, deu duas voltas à chave,
retirou-a da ranhura,
foi à janela pequena
e lançou-a pelas grades
com a força que restava.
Um corvo que ali passava
apanhou a chave no ar,
foi-se embora, levando-a céu afora.
O homem deitou-se no chão
e descansou então para sempre
sobre a liberdade conquistada.

Março/2007

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

As palavras

terça-feira, agosto 05, 2008

Erosão


trago-me inteira até à margem

recebo em beijos
a erosão que as águas fazem

05/08/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Um fogo equivocado


Um dia acendeu-se um fogo equivocado
e foi assim que eu ouvi contar o caso:

Fim de tarde junto à estrada florestal.
A caruma pensa que uma ponta de cigarro
que vê chegar junto a si, lançada de um carro,
está ainda em brasa quente, incandescente.
E esta, por sua vez, ainda tonta da queda,
mais tonta do que já era, vê no olho da caruma
o lume que já perdera sem saber.

Assim, tanto engano em área tão pequena
só podia dar em coisa bem funesta.
Ali mesmo logo se ateou um fogo equivocado
que fez arder boa parte da floresta.

Março/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Tantas noites em flor de Primavera


Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia, 3ª ed., Caminho, 2007.
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, agosto 01, 2008

Incêndio atrás das noites


(A CARTA DA PAIXÃO)
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder, in Photomaton & Vox, Assírio & Alvim, 1995.
Foto: Isabel Solano

sábado, julho 26, 2008

Em cheiro de hortelã


No cheiro a hortelã em que nos deitamos
há um outro mar nascendo da terra

Envolve-nos de verdes orvalhos folhas
minúsculas hastes erguidas ao céu

Nesta manhã que se funde no sol
não existem rostos intranquilos
não existem sombras apesar da luz

Existem apenas corpos sobre a terra
bebendo vida em cores ainda por inventar

22/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

segunda-feira, julho 21, 2008

O caso da maçã e da serpente

ADÃO E EVA

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

– E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

– Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!


José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, 2ª ed., Quasi, 2005.
Foto: Isabel Solano

domingo, julho 20, 2008

Sei que não vou por aí!


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, 2ª ed., Quasi, 2005.
Foto: Isabel Solano

Nas teclas do vento


algumas plantas têm mãos de pianista
tocam as teclas do vento
sem partitura, de cor,
dando-se ares de artista

20/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Os dias imprecisos


Estava um ar tão transparente,
que foram precisos óculos
para desfocar o mundo
e eu tornar a ver os dias
imprecisos, como sempre.

Março/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

terça-feira, julho 08, 2008

Morada de silêncio


a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Al Berto, in "Salsugem", O Medo, 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.
Foto: Isabel Solano

Da função das árvores


Para que servem as árvores
tão altas, frondosas
pelos passeios, em canteiros
no meu bairro
se as crianças que cá vivem
já não as sabem trepar?

3/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Na sombra


No cais da sombra
não voava uma gaivota
não atracavam barcos
não cheirava a maresia
e era noite mesmo de dia

Março de 2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007

Foto: Isabel Solano

segunda-feira, julho 07, 2008

Descomportamento linguístico


Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência lingüística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro -
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos, Editora Record, Rio de Janeiro, 2005
Foto: Isabel Solano

Morno


Tenho calor nas palavras
torpor preguiça
quente de verão
mornas noites
deitadas em redes
palmeiras na praia
abano leques
de saudade
voam areias
algumas

em vão

7/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Estados


Estava-se num estado
de estar assim
alegre e triste
a pensar que o mundo
é belo e existe
e dele não se pode
para sempre disfrutar

Estava-se num estado
de alegre estar o adeus
sempre a espreitar
num estado de sonho bom
e de não querer
nunca acordar

Março de 2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007

Foto: Isabel Solano

domingo, julho 06, 2008

Memória de voo


LEMBRANÇA ALADA

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Mia Couto, in Idades Cidades Divindades, Caminho, 2007
Foto: Isabel Solano

Evanescência


Regresso a pouco e pouco
à calma dos meus dias
sob a sombra do jacarandá

cai uma chuva morna de lilás
sobre um café já frio
e em completa anestesia
distraio-se-me o olhar
em ver passar evanescências

outras cores o tempo a gente

3/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Vício


trinco-te as palavras
como a este massapão
de recheio guloso
meu vício é amargoso
porém
nunca morro de indigestão

Fevereiro/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, julho 02, 2008

Diz-me que ainda há versos por escrever


UM DIZER AINDA PURO

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

Vasco Gato, in Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
Foto: Isabel Solano

Na desgramática


Cansado da tristura dos dias
entrou no invisível das palavras
e esqueceu as gramáticas

foi então que todas as normas voaram
em bando para lá dos montes
só ficaram ele e a sombra dos sons
só ficaram todas as sonoridades possíveis
quando a água dos riachos
escorre pelas fragas
e alguém segura o vento
com o dedo a fazer chiu

para cá dos montes
ele não quis saber
de nocturnas asas
e nem gravou memórias
no instante

2/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Assim


Se perguntam como vou
nem sei se saberia saber dizer
que vou assim
como sei ir
sem pressas cada vez menos
sem pressas de chegar
a lugar algum
que saiba saber dizer
assim cada vez menos com um fim
sem pensar
somente a ver
com todos os sentidos
e a gostar
a gostar

Março de 2007

Bárbara Pais, in In Vida Veritas, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

terça-feira, junho 24, 2008

Paralelo de encontro


elas encontram-se afinal as paralelas
no (in)finito de mãos dadas
riem-se
na imagem
esquecidas delas

24/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

domingo, junho 22, 2008

A preto e branco


os negros surgem à flor do papel

passo a passo
entro pela cal ferida das casas e desvendo
portas entreabertas cortinas de riscado objectos polidos pelo uso
chitas
nódoas seculares risos cinzas resíduos de comida ossos
mantos de pó penumbra mornas onde se encolhem os gatos
arcos de alvenaria gavetas sem fundo trepadeiras recantos de urina
ninhos que a curiosidade das crianças largou ao esquecimento

os brancos recortam-se intensos

a aldeia assemelha-se a uma mandala de líquidos cinzentos
um pouco de amarelo arde no centro da fotografia

por detrás dos cinzentos aguados

ouço guinchos de animais recolhendo às tocas
quando a noite cresce
à medida que o revelador actua
o estrangeiro atravessa o crepúsculo
e pára surpreendido pela luz do flash

depois
basta meter a folha de papel no fixador e esperar

Al Berto, in "Trabalhos do olhar", O Medo, 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.
Foto: Isabel Solano

sábado, junho 21, 2008

Desarrumação


Hoje sei
que nenhum canto se encontra arrumado
e que certos sentimentos são papéis amarrotados fáceis de alisar
outros são pergaminhos inquebráveis que não sei decifrar
atravessados todos eles por sinais contrários que me distraem

Ana Viana, in Mundo Entretecido, Edições Colibri, 1997
Foto: Isabel Solano

domingo, junho 15, 2008

Guardar rebanhos


o meu é um mar de cheiro a terra
e dunas de amoras vermelhas
povoadas dos guizos dos rebanhos
que nunca soube guardar

9/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Vontade


um dia soltou-se da prisão que escolhera
onde vivera anos por sua própria vontade
iludido, crendo que alguém lha impusera
e sem saber como amava a liberdade

um sopro bastou para abrir a porta
que sempre tinha conhecido tão intransponível

Fevereiro/2007

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Rilkeana


I-C

Quem
concede
os anjos?

As nuvens
imitam
mas é inútil

O coração
não repercute
no alado lado

Que grito
penetra
a noite
de
nenhum
desejo?

Ana Hatherly, in "Variações elegíacas", Rilkeana, Assírio e Alvim, 1999.
Foto: Isabel Solano

sábado, junho 14, 2008

Vou levar-te o mar


BÚZIO

sei que nunca viste o oceano,
que nunca olhaste a onda sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida nos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te o mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.

Vasco Gato, in Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
Foto: Isabel Solano

Português (não) suave


O camionista de «piquet»
emocionado
mãos em braços grossos
musculados sobre as ancas
pose triunfal
lançou o olho tímido
ao microfone da TV
e a voz em solavancos
desculpou-se indecisa
das duas ou três frases
de português suave
que o repórter diligente
logo parafraseou com cuidado
"implícita a satisfação no qu'o D.E.L. e..."
mas nem terminou
por baixo do olho miúdo
agora faiscante
do camionista de «piquet»
em português não suave
soltou-se no mesmo instante
o punho grosso
"sastifação é no cu da tua mãe, ó cabrão!"
e foi certeiro
as câmaras picaram
e lá estava o repórter de serviço
atordoadamente esticado no chão

11/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Ensaboando palavras


Sopram-se as palavras
como bolhas de sabão
delicadas;
soltam-se ao brilho da luz,
às mil cores
de reflexos matizados.
É então que,
depois de um breve rodopio,
estalam uma a uma
ante o pestanejar descrente
de quem vê perdida
tanta graça, num instante.

Sopram-se outras ainda,
devagar, com arte redobrada;
segue-as o olhar,
numa vã tentativa
de lhes prolongar a vida.
Mas não.
Estalam todas.
Morrem as palavras
para que vivam as memórias.

Guarda-se a água de sabão;
amanhã será mais dia
de ensaboar palavras.

Fevereiro de 2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007

Foto: Isabel Solano

sexta-feira, junho 13, 2008

Escrevo-te


escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata
da fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto
ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de
romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar

Al Berto, in "Trabalhos do olhar", O Medo, 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, junho 11, 2008

Em cascata


Fechas os olhos
para veres que rios
correm sob as pálpebras
e vês que cascatas
constelando
o céu da tua cama?
Que astros
com elas se despenham?

10/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Prazo


ouvi um poema
escrito nas minhas costas
não quis ver quem o dizia
só quis saber que o sentia
sem querer sentir que sabia

provei as palavras
doces
envenenada a razão
engoli tudo de um trago
com a sofreguidão
de quem tem um prazo
a cumprir, sem atrasos
o tempo a fugir

reclinei-me na poltrona
velha
ainda lá estou
à espera que a noite venha

Fevereiro/2007

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Rasteja uma luz negra






















Escuto as palavras que amontoas na intermitência do sentir
as que traduzem o silêncio e os gestos da sobrevivência
e onde rasteja uma luz negra
a mesma que um dia te absorveu a pele e te cristalizou o
sangue

observo esses cristais-palavras a dissolver-se na neve
a manter-se espelho
ou a lapidar-se em eco

e não sei o que fazer com a espuma que me fica
entre os dedos

Ana Viana, in Memórias do Desapego, Indícios de Oiro, 2007
Foto: Isabel Solano