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quinta-feira, janeiro 31, 2008

A concha perfeita das tuas mãos

Mais um pouco destes Dois Corpos da Alice Vieira que tanto me surpreenderam.


sei um jeito de te fazer ficar
murmuravas nas manhãs em que nascíamos
ávidos de nós
e éramos tão novos
e faltávamos às aulas

posso ter esquecido admito muita coisa
caminhos promessas lugares a cor
da saia que vestia no dia em que não voltei
muita coisa admito menos
a concha perfeita das tuas mãos sobre o meu peito
o cheiro das laranjeiras as cartas
em papel tão adolescente e azul
o esplendor de junho à mesa familiar
os espelhos garantindo-nos um lugar único na casa

posso ter esquecido admito muita coisa
menos os nossos corpos simultâneos
às portas do amor

no arco da minha pele que humidamente
se abria ao lume da tua língua

nessas manhãs em que jurámos
não morrer nunca

Alice Vieira, in Dois Corpos Tombando na Água, Caminho, 2007
Foto: Isabel Solano

Afogamento lúbrico


era domingo
no teu vestido novo
azul turquesa
aquele onde eu buscava
transparências
encontrei castanhos
os teus olhos
e foi nesse mar
que se afogaram os meus

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Escrevem-se sons

Hoje foi dia de ouvir escrever sons de jazz. Continuo com eles noite fora, sem palavras. Ou talvez com palavras demais, tantas e em tal profusão que me escapam.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Nos teus quartos forrados de luar


Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Coral, Caminho, 2003
Foto: Isabel Solano

era ontem em sintra


era ontem em sintra numa tarde de inverno
clara e pouco fria sem brumas de mistério
o castelo no alto a deixar-se ver inteiro
eu a querer ver antes se por lá me perdia
cega entre os cheiros e segredos da serra
a magia o silêncio de todas as árvores os
ramos os musgos verdes os tapetes as acá-
cias invasoras que até já floriam ontem e
era cedo em sintra nessa tarde de inverno
talvez um tudo nada fria tarde que teria
sido breve como qualquer outra tarde em
sintra se como te competia noite tivesses
chegado no teu passo leve mas certo e o
dia de ontem agora estranhamento incerto
não perdurasse e ainda agora eu veja es-
sa mesma luz de sintra luz de ontem presa
aos musgos da tarde de ontem breve clara
eternamente breve um tudo nada muito fria

mas já as acácias derrubaram os carvalhos
quase me esquecia

Bárbara Pais, in Não Sei Falar de Mim, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

domingo, janeiro 27, 2008

Laranja assombrosamente


Laranja, peso, potência.
Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
A matéria pensa. As madeiras
incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
recebe soberania.
E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
A ferida que a gente é: de mundo
e invenção. Laranja
assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa
inocência da terra.

Herberto Helder, in Última Ciência, Assírio & Alvim, 1988
Foto: Isabel Solano

Elas passam


Quando ela passa, serenamente bela,
é da frescura em tons discretos
de aguarela a imagem que retenho
no olhar com que a emolduro.

Mais um pequeno quadro,
que penduro nas paredes dos meus sonhos,
onde todas elas passam,
belas.

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, janeiro 25, 2008

Zeca e Camões

Preparava esta tarde as aulas da semana que vem sobre lírica camoniana e fui à procura de materiais. Tento sempre cativar para a poesia através da música, costuma resultar até nos alunos mais resistentes. E aproveito para dar uma palavrinha sobre Zeca Afonso. O CD já está no meio das redondilhas e sonetos, para não esquecer.



Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.


Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luís de Camões (este sei-o de cor, portanto vem sem referência)

É pena a morfina adverbial






















DIAGNÓSTICO, POSOLOGIA, ADMINISTRAÇÃO

Finalmente curei-me. Os nomes em que assento
a frase são só nomes de figuras sem forma.
É pena os advérbios, mas o meu objectivo
é reduzir de vez aplicação e norma.

Finalmente curei-me. Isso nota-se até
na tentativa (quase) de adjectivos ausente.
É pena os advérbios, mas qualquer terapia
pressupõe um transfer, mesmo que finalmente.

Por cavalos sem rédeas de qualificação,
neste pós-operatório movimento de agora
sonho um espaço e um tempo de fala e amplidão.

E na totalidade de uma cura verbal,
vejo-me em prognóstico a escrever o futuro
sem dependência da morfina adverbial.

Ana Luísa Amaral, in "imagens", Coisas de Partir, Gótica, 2001
Foto: Isabel Solano

Se ouvir


Há luz, há cor
em todo esse labor
da tua escrita.
Mesmo da palavra dor
se solta amor:
é isso que
- se te ouvires -
tu gritas.

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, janeiro 24, 2008

É preciso muito pouca luz para definir um rosto

Eu vou ao encontro de Al Berto porque ele vem sempre ao meu encontro. Amo este poema.
O rosto é da minha amiga BB.






















LEICA

os dedos são o contacto
entre o vidro onde escrevo e o interior do corpo

cada um de nós espreita por uma janela
surpreendemo-nos nesse espaço sem tempo
do que está e não está iluminado

a ponta do feltro risca a pálpebra molhada de tinta
as palavras surgem confusas... click!
a intensidade das luzes e por trás delas o olhar
na penumbra rente ao chão aproximas-te do vidro
focas disparas... o ruído da leica acorda-me
para o silêncio povoado desta sala vazia

é preciso muito pouca luz para definir um rosto
poucas palavras para que o fascínio desse segundo
torne possível dormir dentro da máquina fotográfica

Al Berto, in "Paulo Nozolino / 4 visões", O Medo, 2ª ed., Assírio & Alvim, 2000
Foto: Isabel Solano

Versos brancos


à hora em que os sons me chamam
verto palavras sobre a folha
branca
olho-a de frente, procuro de reverso
não vejo um risco, um verso
todas as palavras desapareceram

é que escrevo a tinta permanente
mente
branca

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Valha-nos pois a katharsis, que a tragédia recomeça dentro de momentos

A katharsis faço-a eu, pelas palavras de Ana Luísa Amaral. Uma tragédia bem familiar e eu a gostar demais disto.
A fotografia fui fazê-la de propósito, dei-me conta de que os meus momentos fotográficos são sempre oferecidos a Hybris... merecidamente, depois de todo o pathos quotidiano.



ANANKÉS (OU PARCAS, OU MOIRAS)

As coisas todas que tenho que fazer
ficam de fora: agora
a hora é de prazer: um verso satisfeito
um olhar devagar

...e os colarinhos da tua camisa
a apontar-me o dever

Era preciso
os colarinhos tão simétricos? Era preciso
o beige da camisa, os vincos da presença,
o bolso descosido a pedir
linha?

Era mesmo preciso esta
tragédia?

Ana Luísa Amaral, in "imagens", Coisas de Partir, Gótica, 2001
Foto: Isabel Solano

terça-feira, janeiro 22, 2008

De místicos perfumes de Lisboa

Descubro agora Ana Luísa Amaral, começando pelas Coisas de Partir. Descubro ainda que há muito mais nela a descobrir, calculo que talvez perto da dezena de livros de poesia publicados desde 1990. Que boa descoberta, e ainda só no início.
A foto também foi tirada de uma esplanada entre lençóis. E o que eu gosto de ser lisboeta, por esta e por outras!


OUTRAS PAISAGENS

À distância de
antenas
(de televisão, de insectos,
de místicos perfumes
e entradas)

As roupas penduradas
na varanda (lençóis em
sugestão são mais
que dez)

Poeira levantada
no meio desta Lisboa
em frente da esplanada
onde estou

e à distância nem sei
se da infância
- ou erro,
te escrevo e desfaleço

de amor.
E trinta e oito graus
à sombra

Ana Luísa Amaral, in "lua de papel", Coisas de Partir, Gótica, 2001
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A carne redonda


Girassóis percorrem o dia fotosférico,
demorado. Mergulham devagar o peso até ao coração
unido. Pétalas e pálpebras, soletrou-as
conjugalmente
o ouro. Acolheu-os a côncava casa
do sono. Rodaram como bilhas ou amonites ou ancas
pálidas - ao sopro e número
do fogo. Passou a onda abaladora.
E fecham agora os olhos sobre a deslumbrante
chaga das núpcias.
Alto e baixo, pai e filha, ouro e imagem,
transmutaram-se numa só massa exaltada.
- A carne redonda que se fecha
na sua casa madura.

Herberto Helder, in Última Ciência, Assírio & Alvim, 1988
Foto: Isabel Solano

Geometrias e asas


os homens inspiram-se nos céus
para construirem as casas
mas nelas imprimem geometrias sem asas
que os céus abertos recusam
por verem do alto das suas viagens
as casas imóveis e fechadas

os céus não sabem nada de geometria
- nem querem saber dela -
é que neles até as linhas paralelas
se encontram sempre algum dia

Bárbara Pais, in Quase Entrecho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

domingo, janeiro 20, 2008

Ter não sei quê do voo suave


Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!

Porque é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Porque vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.

Fernando Pessoa, in Antologia Poética, RBA, 1994
Foto: Isabel Solano

sábado, janeiro 19, 2008

Mãos a vários tempos


Olho a janela
onde nascem cogumelos
sob dedos
que teceram rendas brancas

há mãos que moram nela:
mãos prendas
de um tempo que foi
mãos de hoje
do artesão
que ainda há pouco lá passou

e neste outro tempo em que vejo
- tempo só de cogumelos
sob dedos de rendas
para lá de transparências
tudo na mesma janela -
deixo os meus olhos nela
trago as mãos

para que teçam
entreteçam
sons de palavras
sem rendas
brandas
talvez brancas

Bárbara Pais, in Quase Entrecho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, janeiro 16, 2008

O instante existe


MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles, in "Viagem", Antologia Poética, 3ª ed., Editora Nova Fronteira, 2006
Foto: Isabel Solano

terça-feira, janeiro 15, 2008

É que eu te falo das palavras


O SILÊNCIO

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in "Poesia", Poesia em Verso e Prosa, Círculo de Leitores, 1980
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Tal é o vago movimento da ingénua liberdade


A liberdade é saber que ninguém ouve ou vê
o que em imaginada visão vou escrevendo
e que não é mais que a contingência de um instante
em que a palavra se aventura a não ser nada

Para quê a palavra se não vem de uma nascente
e se não abre um horizonte? Mas a palavra irrompe
do oriente que contém em si e é o vazio magnético
que transmuda o nada em mutação azul

Que posso ser eu mais que o vibrante vagar
em que do mundo só sinto a sua lonjura de veludo
e na página cintilam as brancas constelações?

Tal é o vago movimento da ingénua liberdade
que toca o seu extremo e cria o seu espaço
em que atravessa a sua ausência branca

António Ramos Rosa, in As Palavras, Campo das Letras, 2001
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Nem o Campos, nem o homem da tabacaria

Outras janelas de quartos... Rui de Morais está diferente, mas imparável.


Não vejo televisão nem leio jornais:
não, não quero saber mais!
O meu mundo é a minha rua
vista da janela do meu quarto,
de onde não vejo nem o Campos,
nem o homem da tabacaria;
somente a minha rua
de torres de andares,
os milhares de automóveis
ao longe, a passar na auto-estrada,
e a memória do teu rosto...

O meu mundo é uma imagem parada
diante do tempo que segue ao fundo
em velocidade acelerada.
Deixem-me vê-lo da minha janela!
Não vos peço mais nada.

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

Em dias de luz perfeita e exacta


Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Porque sequer atribuo eu
Beleza às coisas.


Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das cousas: são belas?


Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.


Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!

Fernando Pessoa, Antologia Poética, RBA, 1994.
Foto: Isabel Solano

Foi há tanto tempo...


POEMA À MÃE

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...
Boa noite. Eu vou com as aves!

Eugénio de Andrade, in Poesia em Verso e Prosa, Círculo de Leitores, 1980
Foto: Isabel Solano


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(English translation found in Wikipedia)


POEM TO MOTHER

In the deepest of you,
I know I have betrayed, mother!
All because I no longer am
The sleeping portrait
In the depth of your eyes!
All because you ignore
That there are beds where coldness doesn’t linger
And rustling nights of morning waters!
For that, sometimes, the words I tell you
Are hard, mother,
And our love is unhappy.
All because I’ve lost the white roses
You clenched to your heart
In the portrait with the frame!
If you knew how I still love the roses,
Maybe you wouldn’t fill your hours with nightmares...
But you have forgotten many things!
You have forgotten that my legs grew,
And that all of my body has grown,
And even my heart
Is now huge, mother!
Look – do you want to listen? -,
Sometimes I am still the little boy
That fell asleep in your eyes;
I still clench against my heart
Roses so white
As the ones you have in the frame;
I still hear your voice:
Once upon a time there was a princess
amidst the orange trees...
But – you know! – the night is enormous
And all my body has grown...
I left the frame,
I gave my eyes as water to the birds,
I shan’t forget, mother.
I keep your voice inside me.
And I leave you the roses...
Goodnight. I go with the birds!

(Eugénio de Andrade)

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Agradeço às flores


AS FLORES

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido, Caminho, 2003
Foto: Isabel Solano

domingo, janeiro 06, 2008

O acto entranhado fraco ou forte

Algo diferente em Bárbara Pais. Por acaso, gosto.


"Ninguém existe só para testemunhar um acto perdido
ele encontra-nos
e nós apanhamo-lo guardando-o no bolso do casaco"
(Ana Viana, Memórias do Desapego)


Não existem actos perdidos apenas
actos mais ou menos encontrados
e não se pode perder um acto somente
porque se desejou perdê-lo
- se é possível viável provável alguém realmente querer perder um acto
Ao desejar perdê-lo ele apega-se-nos ainda mais à pele
entranha-se o acto em nós não nos livramos mais dele
do acto
Como em tudo também aqui tudo é relativo
e em estreita dependência - embora sem convergência -
da força do acto
melhor será dizer: da força do encontro com o acto
com o acto em si
Com efeito efectivamente
um acto fracamente encontrado
será pois mais fácil de perder
ainda que nunca se perca totalmente
o acto fraco
que mesmo sendo fraco tem a sua força
e há pelo menos sempre uma ponta
de acto
ainda que seja ponta de acto fraco
que resiste persiste
já coberto de pó e teias de aranha
mas existe
Agora se o acto foi encontrado forte
mesmo que não desejado esse encontro
fruto de um acaso, um azar, uma sorte
nem que se esperneie e esbraceje
furiosamente
para reprimir castigar afugentar
o acto
nem que se chore ou ria desalmadamente
de contentamento ou descontente
nunca
o acto
será
perdido
Ali ficará colado alapado
a engordar da alma
a chupá-la
escondido o acto na cabeleira ou até no buraco do ouvido
jamais se deixando ser esquecido
Se o acto
que já todos sabemos ser forte
também for inteligente
conseguirá até
pa ra do xal men te
fortalecer-se
(sacana do acto!)
no próprio esquecimento
que mais não é do que máscara
coisa aparente que a si própria põe a gente
quando se quer livrar de uma qualquer memória que chateia
que fica mal na história
Um acto forte perdido é fodido!

Bárbara Pais, in Não Sei Falar de Mim, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

"Já não há Pachecos e fazem falta"



"SÃO UNS MERDOSOS"



O CACHECOL DO ARTISTA



Encontrei neste site uma boa listagem da bibliografia de Luiz Pacheco.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Deslinearidade desejada



no caos das pedras em que segues sozinho
já encontraste a linearidade de um caminho
os pés feridos da jornada lamentavam dores
nem os ouviste surdo a esse desejo de paz
que encontrá-la era perderes-te dos teus sonhos
e da felicidade que essa tanta dor te traz

Rui de Morais, in Do Novo Velho Caminho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Um violino na lama


Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir na chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira, in Antologia Poética, Porto Editora, 1974
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Deixa-me rir

E os poetas-cantores? Claro que também têm lugar aqui! Jorge Palma é o primeiro, enche-me as medidas!


Deixa-me rir
essa história não é tua
falas da festa, do sol e do prazer
mas nunca aceitaste o convite
tens medo de te dar
e não é teu o que queres vender

Deixa-me rir
tu nunca lambeste uma lágrima
desconheces os cambiantes do seu sabor
nunca seguiste a sua pista
do regaço à nascente
não me venhas falar de amor

Pois é, pois é
há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor, o que vai dizer
Segunda-feira

Deixa-me rir
Tu nunca auscultaste esse engenho
de que falas com tanto apreço
esse curioso alambique
onde são destilados
noite e dia o choro e o riso

Deixa-me rir
Ou então deixa-me entrar em ti
ser o teu mestre só por um instante
iluminar o teu refúgio
aquecer-te essas mãos
rasgar-te a máscara sufocante

Pois é, pois é
há quem viva escondido a vida inteira
Domingo sabe de cor, o que vai dizer
Segunda-feira

Jorge Palma
Foto: Isabel Solano


Para ouvir Jorge Palma:
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Tarde verde no olho das garças

De Manoel de Barros só tenho O Encantador de Palavras. Fica aqui hoje o registo de que estabeleci como prioridade sobre todas as coisas descobrir outros livros dele por aí, talvez na novíssima Byblos; ainda não fui lá e este é um excelente pretexto para a primeira incursão nesse que deve ser um local de perdição. Melhor deixar os cartões de crédito e livros de cheques em casa e sair só com o dinheiro necessário para o Manoel de Barros... digo eu...

A fotografia é da Ilha dos Pássaros, frente a Escaroupim, no rio Tejo.


Levei a Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
Ela tem um bonito corpo fônico além do propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
O que resta de grandezas para nós são os
desconheceres - completou.
Para enxergar as coisas sem feitio é preciso
não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio.

Manoel de Barros, in O Encantador de Palavras, Quasi, 2000
Foto: Isabel Solano

Tarde parada



Bebo deste ar
às colheres cheias
de nada.

E cheiro o vazio
daquela tarde
parada
num tempo
de memória apagada.

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Liberdade em ti


A minha liberdade
sou eu, na fragilidade
da prisão dos meus afectos.

Como seria livre sem ti,
se te devo toda a liberdade
que há em mim?

Luísa Veríssimo, Mais Poemas, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Desfolhou-lhe a vida


desfolhou-lhe a vida
pétala a pétala
até à despedida

depois trouxe-lhe flores
e levou-a a enterrar

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Secreta navegação

Sophia nunca esteve entre as minhas preferências poéticas. Ando agora a lê-la com mais cuidado e a render-me à evidência da beleza elegante dos seus versos.


Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in No Tempo Dividido, Caminho, 2003
Foto: Isabel Solano

Da ingenuidade do olfacto


a rosa tem espinhos
que o olfacto ignora

Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

terça-feira, janeiro 01, 2008

Quadrinhas à mulher da mágoa antiga


Esta mulher que aqui vejo
Traz pela trela mágoa antiga:
Não a faz mover um beijo
E nunca se ri comigo.

Esta mulher é de pedra,
Tem coração de metal,
Não há carícia que a leve
a livrar-se do seu mal.

Larga a mágoa pelo caminho,
mulher que passas por mim!
E deixa-a ficar sozinha,
que te amargura sem fim.

Ao ver-te fico a pensar
- E ainda não decidi -
Se és tu quem arrasta a mágoa,
Se a mágoa te arrasta a ti.

Rui de Morais, in Do Riso das Insónias, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Deus à beira da água de calça arregaçada


ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo?» Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhadada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo,in Poemas, Presença, 1993
Foto: Isabel Solano