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quarta-feira, fevereiro 06, 2008

O poeta distraído


A musa andava distraída pelas ruas.
Esquecida do seu estatuto,
vestia jeans e t-shirt rota
e chinelava pelas calçadas de Lisboa.

Foi assim nestes preparos
que entrou no jardim da Estrela,
onde estava o poeta, coitado.

«Olha, tirou férias a musa»
- queixou-se o poeta,
sentado na esplanada
à beira de mais um cigarro. -
«E vai de óculos escuros,
para fingir que não vê.
Hoje isto não está de feição.
Amanhã volto.
Guardo o bloco e a caneta,
talvez vá antes à pesca.»

E o poeta foi-se.

O poeta perdeu o momento
em que a musa distraída
tirou as chinelas
e enfiou os pés
no lago do jardim da Estrela,
só os peixes vermelhos
e os pombos a vê-la.

Soube-se que nesse dia
o poeta não pescou nada.
Os peixes percebem de poesia
e no lago do jardim da Estrela
a lotação esteve esgotada.

Bárbara Pais, in Quase Entrecho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

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