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domingo, março 30, 2008

A Cesário


as papoilas continuam rubras
quando as descubro
nos decotes das colinas

30/3/2008

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, março 27, 2008

Outros espelhos


ESPELHO

Fique em sossego o cálice vermelho
da impetuosa flor chamada instinto.

Quero o teu coração para meu espelho,
pois no teu coração não me desminto.

David Mourão-Ferreira, in "Os quatro cantos do tempo", Obra Poética, 5ª ed.,Editorial Presença, 2006
Foto: Isabel Solano

Sombra


Um dia
talvez
me saibas
onde não vês

2006

Luísa Veríssimo, in Da Estranheza, inédito, 2006
Foto: Isabel Solano

Espelho


no poeta
vejo-me
em espelho
luz de mim
o poeta
que sou
com sede
de um brilho assim

27/3/2008

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

terça-feira, março 25, 2008

Acima de tudo não se perca a compostura!

cortem-se os pulsos
lave-se em sangue
o morno
da tarde calma
esconda-se o olhar
tape-se a alma
faça-se tudo
mas acima de tudo
nunca se perca a compostura
é preciso não mostrar
o desconcerto da loucura

2006

Rui de Morais,in Partida, inédito, 2006
Foto: Isabel Solano

Quisesses tu


PRAIA DO ENCONTRO

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como a areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia…

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco!, e todo inteiro
para ti…

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saído mesmo agora da memória…
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória…

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão", Obra Poética, 5ª ed.,Editorial Presença, 2006
Foto: Isabel Solano

Há sempre um mas


queria escrever-te uma carta
amor
mas tenho hoje um bico de pássaro
na ponta de cada dedo

25/3/2008

Rui de Morais, in Do Novo Velho Caminho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, março 24, 2008

Sílaba a sílaba


LIBERDADE

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba a sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das Coisas, Caminho, 2004
Foto: Isabel Solano

domingo, março 23, 2008

Tudo o que me dizes


AOS MEUS POETAS

dizes-me das árvores e dos pássaros
toda a ciência das palavras
que mais ninguém descobriu

segredas-me o que ninguém viu
com a certeza da inevitabilidade
das dúvidas

fazes da incerteza
o espanto de viver

sofres o mundo

em ti
por mim
por todos os outros

nessa voz que me deslumbra
és de mim a voz muda
do grito que sinto
e que não sei dizer

20/03/2008

Bárbara Pais, in Não Sei Falar de Mim, inédito, 2008
Desenho de Ana Hatherly fotografado por Isabel Solano

Da dor de não sofrer


ÓPIO

Se o sofrimento, um dia,
Se mudasse em prazer,
Então eu sofreria
Da dor de não sofrer...

Ao ver o sofrimento
Gerar nova alegria,
Ainda em tal momento
Decerto eu sofreria...

Anrique Paço d'Arcos, in "Cículos concêntricos", Poesias Completas, INCM, Lisboa, 1993
Foto: Isabel Solano

sábado, março 22, 2008

Poemas soltos


andavam hoje poemas à solta
lá por Belém sem peneiras
as castas misturadas
que em poesia as palavras
não se acham umas mais que outras

a gente que ali passava
sorria a ver tanta poesia

as palavras também unem sorrisos
mesmo em versos soltos
pelas paredes brancas

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, março 21, 2008

É ter cá dentro um astro que flameja!

Hoje é o primeiro dia de Primavera e Dia Mundial da Poesia. Que vontade de cantar a toda a gente!


SER POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
É não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca, in Sonetos, Livraria Bertrand, Lisboa, 1980
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, março 19, 2008

Última sombra na memória


Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.

Fernando Pinto do Amaral, in "Escotomas", Às Cegas, Relógio d'Água, Lisboa, 1997
Foto: Isabel Solano

A existência da vazante


Nesse preciso instante,
viste nas águas do rio
a tua própria existência:
marés cheias de saudade
na tristeza da vazante.

Rui de Morais, in Do Novo Velho Caminho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Abismo


na vertigem
de um passo
o último
abraço

Rui de Morais,in Partida, inédito, 2006
Foto: Isabel Solano

terça-feira, março 18, 2008

Diálogo mudo


olho o mar

é um diálogo mudo
tão fecundo
que se confunde
com o mundo
meu mundo
me entranha
estranho
diálogo mudo
mundo
em que me fundo

Rui de Morais, in Do Novo Velho Caminho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Palavras em beijo de vento


EM BEIJO DE VENTO

palavras beijadas
nos lábios do vento
que leva
as palavras
que traz

em tempo
momento
de eterno sempre
palavras desejo
palavras em beijo
me dás

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Às vezes sol


COLABORADORES

Gosto de ler as cartas dos Poetas.
Algumas dizem pouco. Quase nada...

Um lívido circuito nas rosetas
Das letras... Às vezes sol
Fugindo entre águias pretas
A Dor que se adivinha sob
As unhas rosadas
Que influem no papel e nas canetas.

Natércia Freire, in "A segunda imagem", Antologia Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, março 17, 2008

Bebo-te cidade



entre o cheiro a café
da Brasileira do Chiado
bebo a cidade
em desfile de poemas
é toda a Lisboa
que por mim passa
o tempo a perder-se
distante em voo
com os pombos do largo

sou eu aqui o fado
os poetas as guitarras
tenho o destino traçado
pelas antigas melancolias
do meu sangue de Lisboa
cidade varina viva
toda vestida em poesia
a pulsar pela calçada
do meu peito
a tocar as minhas cordas
com o seu jeito

Bárbara Pais, in Não Sei Falar de Mim, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Semiótica


todas as coisas
que estão por outras coisas
são sinais

e todas as palavras
estão por coisas
que estão por outras coisas

sendo as palavras
sinais das coisas
por que estão
às vezes parecem a mais
outras parece que faltam

mas é porque as palavras
estão pelas coisas
que não estão
que - bastem ou não -
são sempre tão desejadas

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito de 2007
Foto: Isabel Solano

Só depois raízes


NA DÉCIMA NONA PRIMAVERA ANTES DO FIM DO SÉCULO

Por uma árvore
que dê primeiro frutos
depois flores
depois folhas
e só depois
muito depois
crie raízes

Jorge Sousa Braga, in O Poeta Nu, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007
Foto: Isabel Solano

Pequenos universos


MICROPOEMAS

I
essas palavras são sementes
desenterradas
das memórias que se querem
desterradas

II
quando uma pedra sorri no caminho
cantam mais alto as cigarras

III
há um tudo nada de arrogante estar
nesse sol que brilha no teu olhar

IV
mas existem as palavras
quando faltam os sorrisos
nas manhãs claras

V
se o sol se esconder atrás dos montes
antes da hora do poente
não o sigas
deixa-o brincar sozinho às escondidas

VI
gravam-se palavras nas rochas
para eternizar momentos indizíveis

VII
no velho tronco
há nomes gravados
em corações enlaçados
por novas paixões

VIII
escrevia como respirava
quando parava
morria

IX
escrevia para respirar
momentos

X
escrevia para segurar
a caneta entre os dedos

XI
acendo velas
para me lembrar
de as apagar

XII
é olhando o voo das aves
que se vê o volume do céu

XIII
quando as cerejeiras ainda florescem
antevê-se a polpa do fruto
sem pensar no caroço

XIV
furtar a polpa ao fruto
só é crime
sem desejo

XV
a voz das aves só se cansa
se ninguém a ouvir

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

domingo, março 16, 2008

Anda um vago sonho por aí


ALQUIMIA DO VERBO

agora fiquei triste, realmente,
emudeci

o que esta boca sente
quando sorri!

o jardim está sem gente
e anda um vago sonho por aí

quando voltar a minha força ausente
hei-de pensar neste alibi

Mário Cesariny, in "visualizações", Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, 2008
Foto: Isabel Solano

Feira do livro manuseado

A BI (Biblioteca de Editores Independentes, constituída pela Assírio &
Alvim, Relógio D'Água e Livros Cotovia) organizou, com o apoio da Abraço, mais uma feira de livros manuseados na Rua Garrett.
Só consegui ir hoje, último dia da feira; e vim satisfeita com o saco das compras. Por 37 euros:
  • da Relógio d'Água,
Fernando Pinto do Amaral, Às Cegas, uma edição de 1997(102 pp)
  • da Cotovia,
o vol. 3 de As Escadas não têm Degraus, de 1990 (321 pp de antologia muito variada: traduções de Homero, Beckett, Yeats, entre outros; e mais de duas dezenas de poetas portugueses, todos contemporâneos)
  • da Assírio & Alvim,
O Poeta Nu, de Jorge Sousa Braga, edição de 2007 (340 pp)
A Cal dos Muros, de António Dacosta, 1994 (109 p)
Antologia Poética, de Natércia Freire, 2001 (161 pp)
  • e ainda, da colecção Biblioteca Editores Independentes (livros de bolso),
o Manual de Prestidigitação de Mário Cesariny, de 2008 (161 pp)

Depois da feira, o inevitável e saboroso descanso na esplanada da Brasileira, a folhear as compras e ver o Chiado a passar. Os grandes prazeres fazem-se de coisas simples assim.

sábado, março 15, 2008

Sal sem mar


O inverno ainda faz esperar
o sal sem mar nos talhos
onde hão-de secar cristais

Flores descem pioneiras
as encostas dos candeeiros
a antecipar na manhã clara
deste março o estio para vir

Vêem-me a mim apenas
caminhando pelas baratas
atravessando as eiras
sem beira
os olhos espantados
a contemplar o breve casario
tosco enfileirado de madeira

Bárbara Pais, in Impressionismos, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Na extrema e lenta doçura da tarde


EM LOUVOR DO FOGO

Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem,
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

na extrema e lenta
doçura da tarde.

Eugénio de Andrade, in Antologia Poética-5, Porto Editora, Porto, 1974
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, março 12, 2008

Em ondas


para além
da nudez dunar
no endemismo próprio
das areias
voláteis
voluptas ondas
brancas
sobre sisal
afinal sereias
deitadas
nereias
para além
ondas francas
salinidades
sobre azul

Bárbara Pais, in Impressionismos, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Esponsais de primavera


(Nunca mais tornarei a ver esta minha
vizinha de eléctrico.)

Vem hoje um cheiro tão bom lá de fora do mundo!
Um cheiro a esponsais de primavera
com deusas de astros na fronte
e enlaces de folhas de hera
no cabelo voado...

(Ah! se eu encontrasse a ponte
que vai para o outro lado!)

José Gomes Ferreira, in Antologia Poética-5, Porto Editora, Porto, 1974
Foto: Isabel Solano

terça-feira, março 11, 2008

No amor é indiferente a cor


PELE

Temos a mesma pele,
descobri anos depois.
É isso que nos impele
a sermos um, sendo dois.
Amar é ter a mesma pele,
o resto vem depois.

(E não falo da cor,
que é indiferente no amor).

Torquato da Luz, in Ofício Diário, Papiro Editora, Porto, 2007
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, março 10, 2008

Sentires ambivalentes


Quando o sol alonga as nossas sombras diurnas
sobre as amplas dunas ainda quentes
conhecemos sentires ambivalentes:
na saudade do dia que ainda não morreu
desejamos já a noite que anuncia o céu.

Bárbara Pais, in Impressionismos, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano

Amor da palavra


AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que te não vejo.
Boca na boca, através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.

António Ramos Rosa, in "Nos seus olhos de silêncio", A Palavra e o Lugar, Publicações Dom Quixote, 1977
Foto: Isabel Solano

domingo, março 09, 2008

Sem pedras no caminho


Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)

Era um caminho
sem pedras no caminho
sem covas
sem lombas
sem curvas
era um caminho sem nada
que estorvasse o passo
no caminho
sem espanto nem surpresa

Deixei as minhas pernas
no caminho
e perdi-me os olhos
ao longe
no denso e escuro arvoredo

Rui de Morais,in Partida, inédito, 2006
Foto: Isabel Solano

Às janelas do computador


ELA - AGORA

Não menos que Helena bela
Ela senta-se à janela
Porém não à janela mas às janelas
Do computador
Que abrem portas que são redes
Páginas que são sítios
Avenidas que são ermos
Que agora percorremos
Já sem voz
Cada vez mais sós

Tanta profusão
Atira-nos
Para um lixo que nos deita fora

Ana Hatherly, in "Hors texte", A Neo-Penélope, &etc, Lisboa, 2007
Foto: Isabel Solano

sábado, março 08, 2008

Sem ser javanês

A propósito de um poema de René Ghil, uma experiência de Rui de Morais, tentada neste laboratório. Divertimentos...



Nampa dassina tu ni
contra savi fon tará
son si son cá tanu tavi
son si vanaton camura
balha, balha con saba
balha, balha con tava pa
ba zai crata ba turai
chanitu nata barai

Rui de Morais, in Para Ler sem Lupa, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, março 03, 2008

Nós embargados


Voltas à margem de pensamentos antigos
Idos os dias da luz diáfana

Afogas afagos em canções desesperadas
Já paradas as mãos no piano

Invadem-te os sons
É a aragem
Cantas
Encantam-te
As notas selvagens
Desse pranto

Voltas à margem de pensamentos antigos
Idos os dias da voz embriagada

Embargados nós

Bárbara Pais, in Quase Entrecho, inédito, 2008
Foto: Isabel Solano