Há anos que os via
no café do meu bairro
por entre a bica apressada
(a minha bica apressada,
não a deles,
que ali ficavam),
um em cada mesa,
ele de jornal aberto
na manchete do dia
e ela, de livro na mão,
lia, lia, lia
(ou talvez não).
Nunca os vi trocar uma palavra,
um sorriso, um gesto.
E no entanto ali estavam,
nem parecia que se encontravam
todos os dias
à hora da minha bica apressada,
cada um na sua mesa,
lá no café do meu bairro.
Um dia estava só ele.
Pedi o meu café,
fui vendo a mesa dela vazia
e o olhar dele
poisado na rua
para lá da vitrina,
a manchete manchando
o jornal esquecido.
Ao balcão um cliente recém-chegado
trouxe a notícia da desgraça:
"Então a D. Beatriz lá se foi
esta noite, coitada."
Que sim, alguém respondeu,
durante o sono,
tranquila, morreu.
No silêncio da mesa do canto
o homem deixou de olhar a rua.
Olhava para dentro.
Falava consigo.
Há tantos anos
para lhe dizer
qualquer coisa
que os juntasse
na mesma mesa do café,
no mesmo final de vida.
E fora sempre deixando para amanhã
- maldita coragem adiada!
E uma lágrima desceu
sem que ninguém visse,
senão eu.
Fevereiro de 2007
Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano
1 comentário:
Fortíssimo, tenho dito.
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