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sábado, julho 26, 2008

Em cheiro de hortelã


No cheiro a hortelã em que nos deitamos
há um outro mar nascendo da terra

Envolve-nos de verdes orvalhos folhas
minúsculas hastes erguidas ao céu

Nesta manhã que se funde no sol
não existem rostos intranquilos
não existem sombras apesar da luz

Existem apenas corpos sobre a terra
bebendo vida em cores ainda por inventar

22/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

segunda-feira, julho 21, 2008

O caso da maçã e da serpente

ADÃO E EVA

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

– E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

– Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram,
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
– Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
– Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!


José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, 2ª ed., Quasi, 2005.
Foto: Isabel Solano

domingo, julho 20, 2008

Sei que não vou por aí!


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio, in Poemas de Deus e do Diabo, 2ª ed., Quasi, 2005.
Foto: Isabel Solano

Nas teclas do vento


algumas plantas têm mãos de pianista
tocam as teclas do vento
sem partitura, de cor,
dando-se ares de artista

20/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Os dias imprecisos


Estava um ar tão transparente,
que foram precisos óculos
para desfocar o mundo
e eu tornar a ver os dias
imprecisos, como sempre.

Março/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

terça-feira, julho 08, 2008

Morada de silêncio


a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada

esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos

espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar

outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

Al Berto, in "Salsugem", O Medo, 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2005.
Foto: Isabel Solano

Da função das árvores


Para que servem as árvores
tão altas, frondosas
pelos passeios, em canteiros
no meu bairro
se as crianças que cá vivem
já não as sabem trepar?

3/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Na sombra


No cais da sombra
não voava uma gaivota
não atracavam barcos
não cheirava a maresia
e era noite mesmo de dia

Março de 2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007

Foto: Isabel Solano

segunda-feira, julho 07, 2008

Descomportamento linguístico


Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência lingüística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento lingüístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro -
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

Manoel de Barros, in Ensaios Fotográficos, Editora Record, Rio de Janeiro, 2005
Foto: Isabel Solano

Morno


Tenho calor nas palavras
torpor preguiça
quente de verão
mornas noites
deitadas em redes
palmeiras na praia
abano leques
de saudade
voam areias
algumas

em vão

7/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Estados


Estava-se num estado
de estar assim
alegre e triste
a pensar que o mundo
é belo e existe
e dele não se pode
para sempre disfrutar

Estava-se num estado
de alegre estar o adeus
sempre a espreitar
num estado de sonho bom
e de não querer
nunca acordar

Março de 2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007

Foto: Isabel Solano

domingo, julho 06, 2008

Memória de voo


LEMBRANÇA ALADA

Em alguma vida fui ave.

Guardo memória
de paisagens espraiadas
e de escarpas em voo rasante.

E sinto em meus pés
o consolo de um pouso soberano
na mais alta copa da floresta.

Liga-me à terra
uma nuvem e seu desleixo de brancura.

Vivo a golpes
com coração de asa
e tombo como um relâmpago
faminto de terra.

Mia Couto, in Idades Cidades Divindades, Caminho, 2007
Foto: Isabel Solano

Evanescência


Regresso a pouco e pouco
à calma dos meus dias
sob a sombra do jacarandá

cai uma chuva morna de lilás
sobre um café já frio
e em completa anestesia
distraio-se-me o olhar
em ver passar evanescências

outras cores o tempo a gente

3/06/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Vício


trinco-te as palavras
como a este massapão
de recheio guloso
meu vício é amargoso
porém
nunca morro de indigestão

Fevereiro/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, julho 02, 2008

Diz-me que ainda há versos por escrever


UM DIZER AINDA PURO

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

Vasco Gato, in Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
Foto: Isabel Solano

Na desgramática


Cansado da tristura dos dias
entrou no invisível das palavras
e esqueceu as gramáticas

foi então que todas as normas voaram
em bando para lá dos montes
só ficaram ele e a sombra dos sons
só ficaram todas as sonoridades possíveis
quando a água dos riachos
escorre pelas fragas
e alguém segura o vento
com o dedo a fazer chiu

para cá dos montes
ele não quis saber
de nocturnas asas
e nem gravou memórias
no instante

2/07/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.

Foto: Isabel Solano

Assim


Se perguntam como vou
nem sei se saberia saber dizer
que vou assim
como sei ir
sem pressas cada vez menos
sem pressas de chegar
a lugar algum
que saiba saber dizer
assim cada vez menos com um fim
sem pensar
somente a ver
com todos os sentidos
e a gostar
a gostar

Março de 2007

Bárbara Pais, in In Vida Veritas, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano