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sábado, dezembro 19, 2009

Silêncios - 1º prémio do concurso de poesia "Ora vejamos... 2009"





















SILÊNCIOS

Encontramos a praia deserta. Com os olhares fugidios,
ensaiamos alguma conversa de mistérios abertos
na seriedade do momento musicado pelas ondas do mar
e pelos gritos das gaivotas tristes, mas brancas.
O silêncio está sempre ocupado, mesmo quando não há palavras;
portanto, as reticências podem prolongar-se em suspiro longo,
os pontos finais deitar-se ao abandono do ar fresco.
A manhã parece cheia de vazios repletos de sensações
e as palavras vão ganhando agilidade, ritmo, alguma emoção,
enquanto os silêncios de mar calam brisas ainda húmidas.
As gaivotas alinham-se agora, sentadas na areia molhada,
enquanto batem os corações que as olham, descompassados.
Sentimos o ar tão quente, que queremos ter asas também,
voar contra o vento de penas leves em desalinho.
Enterramos longe as pesadas penas de ontem.
Ainda há pouco o tempo parou em todos os relógios.
E nós deixámos.

Isabel Solano

Sereno refúgio - 3º prémio do concurso de poesia "Ora Vejamos... 2009"




















SERENO REFÚGIO

Sei que a brancura dos dias é aparente
E que a noite se há-de deitar devagar
Entre nós, o oceano, o meu país cansado
E o teu, que ainda escuta ardente
Os rumores que lhe chegam do mar.

Sei que o vento que hoje sopra violento
Amanhã será brisa ou quase nada
E que as nossas vozes, que hoje cantam
Melodias ridentes, inventando sinfonias,
Hão-de ser lágrimas, como o orvalho é geada.

Sei que não crês no que te digo triste,
E me devolves um sorriso que diz que existe
Mais do que este constante movimento
Descendente na minha razão tão escura.

Sorris. Ou ris-te de mim, ainda não sei.

Mas sei que a toda esta imparável mudança
Resiste firme a tua esperança, sólida
A tua mão na minha. E que a tua voz,
Essa, nunca vacila quando a noite vem
E me anuncia a ternura sempre renovada
De um outro dia que se aproxima.

Isabel Solano

sábado, dezembro 12, 2009

Ilusão inalienável


Ora, quero lá saber da chuva,
do vento que uiva lá fora,
do rio furioso que transborda,
dos raios, dos trovões,
de todas as intempéries!

Quero antes aquecer ilusões
à lareira, todos os serões,
de portas e janelas bem fechadas,
para que das chuvas ácidas
que afogam esse mundo estranho
no meu mundo nunca entre nada!

19/11/2007

Bárbara Pais, in In Vida Veritas, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, novembro 30, 2009

Cascata


Dos teus dedos, quando tocam teclas de água,
Escorre um rio que lava as minhas lágrimas
E me devolve os sonhos que quis ter um dia
Presentes, vivos, num rodopio tonto de euforia

Dos teus dedos, quando acordam calmarias,
Desprendem-se em cascata todas as fantasias
E rolam revoltas as minhas ideias – tão soltas –
Por entre os seixos dóceis e os juncos complacentes

Nos teus dedos me perco e encontro o curso fluido
Transparente, da minha alma que pensava ausente

29.11.2009

Isabel Solano, in Sem nós na garganta, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

terça-feira, agosto 25, 2009

Lascívia


Em que pensas
quando mordes os bagos
da romã que te entrego
com a minha mão
inteira

28/04/2009

Bárbara Pais, in Regressos, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

sábado, agosto 22, 2009

Ponto de suspensão


O homem do violino
toca à porta do mercado.
Transporta a gente que passa
ao som de outro destino.
Volteia o arco nas cordas,
acorda o povo que dorme
e que vem saciar a fome
de outras frases, musicais.
Pára o tempo,
cessa a máquina da urbe.
Tudo fica suspenso,
tudo.

18/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, agosto 20, 2009

(De)formar-se


na infinitude labiríntica de cada eu
há encontros
com espelhos que deformam

29/04/2009

Isabel Solano, in Esquecimento global, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, agosto 19, 2009

Mudez


Pelas espessuras do silêncio
é que vamos
olhos desvendados
tacteando nadas
Consumimos as palavras
todas
em frases loucas
Já não temos senão
algumas interjeições
as menos usadas
e duas ou três conjunções
das que não lembram ao diabo

17/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

domingo, agosto 09, 2009

Sereno refúgio



(Texto já aqui publicado em versão audio, com alteração do título.)

SERENO REFÚGIO

Sei que a brancura dos dias é aparente
E que a noite se há-de deitar devagar
Entre nós, o oceano, o meu país cansado
E o teu, que ainda escuta ardente
Os rumores que lhe chegam do mar.

Sei que o vento que hoje sopra violento
Amanhã será brisa ou quase nada
E que as nossas vozes, que hoje cantam
Melodias ridentes, inventando sinfonias,
Hão-de ser lágrimas, como o orvalho é geada.

Sei que não crês no que te digo triste,
E me devolves um sorriso que diz que existe
Mais do que este constante movimento
Descendente na minha razão tão escura.

Sorris. Ou ris-te de mim, ainda não sei.

Mas sei que a toda esta imparável mudança
Resiste firme a tua esperança, sólida
A tua mão na minha. E que a tua voz,
Essa, nunca vacila quando a noite vem
E me anuncia a ternura sempre renovada
De um outro dia que se aproxima.

14.06.2009

Isabel Solano, in Sem nós na garganta, inédito, 2009.
Fotos: Isabel Solano

sexta-feira, julho 31, 2009

O poeta em um pouco de morte


Leio e cobiço o Poeta
que quer morrer por um bocado
que isto de andar neste viver
o vem trazendo tão cansado

A morte adormeceu-lhe ao colo
e a um canto do quarto ali está ela
a mulher que vela o sono de ambos
tricotando o tempo devagar
para que o descanso se demore
e o Poeta só acorde
farto da sua própria morte

17/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

sábado, julho 18, 2009

Quieres verme bailar?


UMA BAILARINA ANDALUZA EM 1992

Morena, só brilhante o cabelo
e a blusa de licra
rente aos seios, do ventre
uma penugem adivinhada
junto ao vazio de onde se soltou
há quinze anos,
deixa que a música se instale
entre suor e suor,
ronda-que-ronda de corpos
vindos do sono bom da tarde,
da luz longa do dia,
do adormecer do sol.
Está sozinha, o busto antes de tudo,
as coxas assentes na bancada,
as mãos no rebordo de madeira,
medindo os passos hesitantes,
os braços que se evitam,
os olhos que se espreitam,
ronda-que-ronda de lutos
e de esperanças - me quieres?
Quieres verme bailar?
E, súbita, rompente e esbelta, em espiga,
ergue-se num sopro,
a nua ponta dos pés na areia de que se fez,
e um hábito antigi
a embala,
numa cadência de tragédia, de saliva e de todos
os cheiros bons
que o seu corpo exala,
as ancas derramadas da cintura,
o olhar por acaso distraído,
os dedos de arabesco em carne pura
troçando, para nós, o desejo
de dançar.

António Mega Ferreira, in O tempo que nos cabe, Assírio & Alvim, 2005.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, julho 13, 2009

A palavra


Ah como eu queria
encontrar a palavra
que mesmo calada
tivesse a força
de ser tudo
sem dizer nada

15/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

sábado, julho 11, 2009

O tradutor de silêncios


(ESCRE)VER-ME

nunca escrevi

sou
apenas o tradutor de silêncios

a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

Mia Couto, in Raiz de orvalho, Caminho, 1999
Foto: Isabel Solano

domingo, junho 21, 2009

Movimento aparente



14.06.2009

Isabel Solano, in Sem nós na garganta, inédito, 2009.
Fotos: Isabel Solano

Ao terceiro dia



Manuel Alegre, in Livro do português errante, Publicações Dom Quixote, 2001
Fotografia e voz: Isabel Solano

quinta-feira, junho 11, 2009

Vês um peixe


LEITOR, VÊS UM PEIXE?

Chegas à beira do tanque,
mergulhas e sem equívoco
revês o peixe que passa
com a onda possível a espraiar-se.
Pões o joelho gasto na deslocada
pedra antiga. Diverso azul
que te perturba lembrado
da visão pueril! Se ajoelhas
no meio da vida inteira
vês sinuosamente percorrer
o azul a soma das nossas vidas
onde te encerras.

Fiama Hasse Pais Brandão, in Obra Breve, Assírio & Alvim, 2006.
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, maio 01, 2009

Ainda a ponte


Se um dia secarem as palavras
do rio que só nós soubemos navegar
se acordarmos sós e despidos
das quimeras que já não podemos segurar
restará ainda a velha ponte
hirta e fria, abandonada,
sobre um leito desfeito, vazio,
e alguns versos soltos pelas margens
como as folhas de outono

de nós nada mais se ouvirá

15/04/2009

Isabel Solano, in Sem nós na garganta, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

sábado, abril 25, 2009

Abril de cinza


escrevo-te das costas de um tempo amordaçado
quando ainda era pecado simplesmente sentir
e por isso a rosa se exilou do próprio cheiro

digo-te que hoje vejo abril em tons de cinza
que há um cravo a murchar de dor em cada mão

seca-se-me a voz, seca a caneta com que escrevo
e amachuco a folha que o vento já arrasta pelo chão

3/1/2008

Isabel Solano, in Entretextos, inédito, 2008.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, abril 13, 2009

Dos infiéis defuntos

A Ruy Belo

Este país já nem sequer existe
a primavera mente mansa e morna
o tempo corre em ritmo decadente
o vento sopra forte e apaga os traços
dos passos que deixamos pelo caminho

Este país extinguiu-se mudo para o mundo
e nem o mar que um dia tanto amou
chorou o instante em que ele se finou

29/03/2009

Isabel Solano, in Esquecimento global, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

quinta-feira, abril 09, 2009

Momento


HORÁRIO DO FIM

morre-se nada
quando chega a vez

é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos

morre-se tudo
quando não é o justo momento

e não é nunca
esse momento

Mia Couto, in Raiz de orvalho, Caminho, 1999
Foto: Isabel Solano

terça-feira, abril 07, 2009

A matéria simples


Os brilhos que na noite vêm
são dos olhos dos que sonham,
viagens pelos mares de outras águas.
São os que não gostam de se elevarem
no ar sobre os antigos oceanos
e amam os pequenos riachos
e o fundo invisível dos poços.

Fiama Hasse Pais Brandão, in Obra Breve, Assírio & Alvim, 2006.
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, março 25, 2009

A raiz a terra a razão


ARTE POÉTICA

Ser a raiz das coisas
dentro na terra mergulhar
não por ser raiz
- prosápia dos tiranos -
mas curiosa
primordial volúpia
de conhecer
o que não se pode e é;
armar entre os trâmites da terra
- seca, fera e estéril -
uma sementeira próspera,
escolher um a um os grãos
que hão-de guiar os olhos,
vigias da alma
mais que olhos,
felizes arquivadas folhas
de servir
aos dedos impacientes
- mesmo deus tem dentro um deus profundo -
com que o poeta traça
o seu destino cego,
quando os dedos penetram,
rasgam, dentro da terra
enterram, e se enterram
talvez sonhando das coisas ser
a raiz,
a última razão.

António Mega Ferreira, in O tempo que nos cabe, Assírio & Alvim, 2005.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, março 23, 2009

Que porém


Gratificar o sol
com algumas excepções:
a ave que porém não cai
o grilo que porém não canta.

António Mega Ferreira, in "Génesis: anotações", O tempo que nos cabe, Assírio & Alvim, 2005.
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, março 20, 2009

O vento um verbo o verso


METÁFORAS

As metáforas devoram as metáforas
mas nunca ninguém dirá
aqui
ou
ali.
Porque o teu reino é no adverso e no inverso
e só aí
o vento o verbo um verso.

Manuel Alegre, in Livro do português errante, Dom Quixote, 2001.
Foto: Isabel Solano

domingo, março 15, 2009

Sarauí


Entre rigorosos véus de areia
as mães afagam com olhos de água
os filhos que embalam em doce canto
e amarga sede inconformada

29/01/2009

Isabel Solano, in Esquecimento global, inédito, 2009.
Foto: Isabel Solano

Pela competitividade


Esses senhores e senhoras
que tão bem parecem saber
aquilo que ao povo convém,
que assinam leis, tratados,
debitam discursos inflamados
entre S. Bento e Belém,
agora amuam e ralham
porque não temos maneiras
- "Pobres, mal agradecidos!" -
se humildemente gememos
que a vida está uma canseira,
que já não há quem aguente.

Lá do alto, empertigados,
nos salões que nós pagamos,
dizem-nos que o nosso mal
é não sabermos competir
pelo progresso da nação;
que temos até muito mais
do que aquilo que merecemos.
E têm alguma razão.
Abra-se, pois, a grande competição:
nós dum lado, eles do outro,
veremos quem tem razão.

13/11/2007

Isabel Solano, in Outras cantigas, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

Formigas formigas formigas formigas



NEM SEMPRE AOS POETAS APETECEM AS ESTRELAS

Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
De formigas assexuadas negras nítidas e rápidas
Com olhos fantásticos colhendo miríades de imagens
E inúteis os olhos das formigas
Desenhadas como um oito ou como um sinal de infinito
Muitas corteses atarefadas prejudiciais
Clericais sociais subtílissimas pequenas
Formigando no chão
No chão onde florescem os cardos e as cores
No chão onde assenta a carne ansiosa das mulheres
E os joelhos dos homens
No chão onde ecoa a voz repugnante dos pregadores
E a voz das juras e dos negócios
No chão onde cai o suor dos aflitos
E o suor dos amorosos
E o suor dos operários
E o suor dos gordos
No chão onde andam os pés e estalam os escarros
No chão das guerras e das famílias correctas
E dos vasadouros e dos jardins
E do pus verde dos mendigos
E das chagas rendosas e das rendas custosas
E das doidas furiosas
E das rosas
E das airosas e das feias e dos bispos e dos triunfadores
E dos cretinos e das virgens
E dos remédios e dos males
E das vertigens e dos abismos
E das cismas
E dos sismos
E dos vermes do ventre e das sonecas
E dos ludíbrios e dos hábeis
E da força dos garantidos
E das sementes

Apetece-me não sei porquê uma história de formigas
A grande invasão das formigas multiplicando-se
Cobrindo a face da terra e a dos homens e das mulheres
Entrando-lhes pelos narizes para roerem os olhos por dentro
E fazendo bulir as coisas mortas e as vivas
Com o espantoso treme-luz irisado e magnífico
Dos seus reflexos negros e a substituírem todas as cores

Na grande montanha uma mulher enorme
Nua e infame
Tem as pernas escachadas sob as pregas do ventre
E sob as pregas do ventre seu sexo negro
É o grande formigueiro do mundo

Vive?

As formigas esvaziaram-na da enxúndia e substituíram-na
Só lhe deixaram a pele por fora para ainda haver branco visível
E como pêlos ampliados excitados e crescentes
Cobriram e desceram o vale
Enroscaram-se nas árvores
Desinquietaram a placidez das pedras
Forraram as aldeias e as cidades
Os animais e os homens

Que é do ciúme e das angústias?
Que é do amor e das palavras?
Que é das carícias e dos dentes?
Que é das renúncias e dos crimes?
Que é das tentações
Das promessas
Dos desejos
Dos apetites
Das fúrias?
Que é de todas as músicas?

O sol inútil cobre um mar negrejante onde os reflexos são como os olhos das moscas
E um silêncio tremendo finge de paz no mundo
Uma paz de silêncio com formigas

Formigas
Formigas
Formigas
Formigas

António Pedro, in Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, vol. I, Edições 70, Lisboa, 1984
Foto: Isabel Solano

sábado, março 14, 2009

Não me falem do Outono!


OUTONO

Partiram no Outono e nunca mais voltaram
nem vão voltar
os que amei e me deixaram
a dor que sempre me há-de acompanhar
até o Outono me vir também buscar.

Não me falem, portanto, do Outono
nem das folhas caídas pelo chão,
triste imagem do abandono
que à noite me rouba o sono
e agrava a solidão.

Quero ter antes, para sempre, o Verão.

Torquato da Luz, in Por Amor e Outros Poemas, Papiro Editora, Porto, 2008
Foto: Isabel Solano

domingo, março 08, 2009

Incauta


ÚLTIMO DE "TRÊS POEMAS PARA CECÍLIA MEIRELES"

Feliz corria. E incauta.
E o vento sua trança destrançava
enquanto um som de flauta
flutuava.

Quantos anos passaram para que
seu cabelo de ouro e espiga
se cobrisse de neve? Se
alguém o souber que diga.

Ou não diga. Para quê dizê-lo?
Se há algum cabelo ao vento
já não é o seu cabelo;

é o de outra menina incauta
que não sabe que cada esquecimento
tem escondido um som de flauta.

Sidónio Muralha, in Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, vol. I, Edições 70, Lisboa, 1984
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, março 06, 2009

Tempo


Sei de um recanto
na margem da ribeira
onde à tarde me sento
e fico só olhando
o lento passar do tempo
ao som dos pássaros
e da água corrente

12/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

Porosidade etérea


MÁQUINA DO MUNDO

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.

Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

António Gedeão, in Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, vol. I, Edições 70, Lisboa, 1984
Foto: Isabel Solano

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

A praga


À despedida, como se aquele encontro fosse o deles,
soltaram-se insectos das bocas e as vozes somente diziam
alguns rumores de ráfia amachucada entre os dedos.

11/11/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

O luar que traz?


LUAR

O luar
Pousa
Branco
No pássaro
Negro
Da noite.

Traz
Aos Homens
Vontade
De procurar
No feno
Exaltações
De cor
Nos corpos nus
Das Ceifeiras
Que Neles
Se acenderam
De dia.

Joaquim Carvalho, in "Em busca de ti", Recuperar a claridade, Pangeia Editores, 2008.
Foto: Isabel Solano

terça-feira, fevereiro 24, 2009

A carreira 10


Parto hoje à tarde na carreira 10
está decidido. Sem olhar para trás
sem me despedir sequer da minha rua

Parto hoje à tarde na caligrafia firme
do recado que deixo na porta do quarto
à espera de dizer-te o que já sabes

Vou procurar-me.
Talvez um dia
volte para jantar.

9/11/2007

Rui de Morais, in Caminhante, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

As coisas vêm vão e são tão vãs


MAS QUE SEI EU

Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha

Ruy Belo, in "Monte Abraaão", Todos os Poemas - 2, 2ª ed., Assírio & Alvim, 2004.
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Crateras na noite


Queres o beijo da lua
enquanto na terra bebes o mar
em vagas de esperança
deitadas sobre as dunas
de areias finas à luz crua
e fria do teu olhar.

Ergues o tronco
como quem quer ser de novo,
fitas um horizonte qualquer
que julgas perceber,
mas não te vês descalço,
a areia entranhada
entre os dedos dos pés,
colada em ti.

Lá em cima a lua ri-se
e as gargalhadas redondas
abrem crateras na noite.

9/11/2007

Bárbara Pais, in In Vida Veritas, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

O coração à solta


MADRUGADA

Cola os ouvidos ao silêncio, quando os pássaros
voltearem na casa abandonada.
Só então conhecerás o rumor dos passos
que precedem a madrugada.

Toda a vida é um quadro em que os tons claros
dão por vezes lugar aos mais escuros.
Mas não é raro
florescerem manhãs por trás de velhos muros.

Deixa portanto à solta o coração
e acolhe a luz que espreita além da escuridão.

Torquato da Luz, in Ofício Diário, Papiro Editora, Porto, 2007
Foto: Isabel Solano

domingo, fevereiro 08, 2009

Errância


No quente de um café à beira-mar,
um homem naufragava em si, perdido
em sonhos embalados pelas ondas,
ouvindo em eco sons de búzios ocos.

Pela areia húmida, havia passos sem sentido,
deambulações sem tempo conhecido
de alguns vagos vultos indiferentes.

Ali mesmo, num já frio café à beira-mar,
eu queria ter o olhar errante daquele homem
e beber dele o desejo ardente de sonhar.

7/11/2007

Isabel Solano, in Errância, inédito, 2007.
Foto: Isabel Solano

Sigamos o cherne

Come dive with me
SIGAMOS O CHERNE

Sigamos o cherne, minha Amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria...
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa de passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado...

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa...

Alexadre O'Neill, in Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, vol. I, Edições 70, 1983
Foto: Isabel Solano

sábado, fevereiro 07, 2009

Nós


Quando um dia nos sentarmos à mesma mesa
poisaremos enfim os olhos longe da tristeza
que sente a montanha por não ver o mar

6/2/2009

Luísa Veríssimo, in Nós, inédito, 2009
Foto: Isabel Solano

Imagens


Tantas praias, tantos mares vislumbrados
num tempo de paixão, terna loucura!
Restaram desse olhar imagens baças
atadas à saudade que ainda dura.

São tempos de silêncio amordaçado
estes, que agora temos, de amargura.

5/11/2007

Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Desistir


Deixar um verso a meio,
como a manhã -
se desiste.

Francisco José Viegas, in O Puro e o Impuro, Quasi, 2003
Foto: Isabel Solano

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

A diferença entre o poeta e a cigarra


O POETA E A CIGARRA

O mundo sabe
que, para ser belo,
necessita ser escrito.

Carente,
o Universo,
nos pede confirmação
do nosso incondicional amor.

A diferença
entre o poeta e a cigarra
é apenas a sinceridade.

Mia Couto, in Idades Cidades Divindades, Caminho, 2007
Foto: Isabel Solano

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

O poeta que pensa?


O poeta que pensa no poema?
Que sobre o mundo muda o arco do futuro
como um vasto universo inverso ao tempo

Gastão Cruz, in Crateras, Assírio & Alvim, 2000
Fotografia: Isabel Solano

Porto seguro


Para cada poeta existe um porto seguro

Em cada poema há um barco
em cada verso uma amarra solta
e as palavras são outras tantas viagens
fazendo-se ao mar em sons que sulcam
as águas e sorvem a aragem húmida
Outras voam em rimas circulares
chiam ventam imitam tempestades
até choverem asas de gaivota
sobre a página repleta
de bicos abertos de aves

Enchem-se as nuvens de cinza
mas a luz ainda respira
pois para cada poeta existe um porto seguro
onde as nuvens se dissolvem
onde a fúria das ondas é musical
onde se embalam corações cansados
se gritam todos os sonhos afinal

Para cada poeta existe um porto seguro

30/1/2008

Bárbara Pais, in Impressionismos, inédito, 2008
Fotografia: Isabel Solano

domingo, fevereiro 01, 2009

Vazio


POEMA VAZIO




...






21/11/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007

sábado, janeiro 31, 2009

Reflexo

A boat to heaven
REFLEXO

Como um lago o poema
não repete reflecte

Gastão Cruz, in Crateras, Assírio & Alvim, 2000
Foto: Isabel Solano

Implosão


À falta de poesia
fez-se implodir um poeta
sobre uma folha vazia

20/11/2007

Rui de Morais, in Do Riso da Insónia, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano

Para além das grades

Emprisoned
Parece haver de novo grades nas janelas
e poucos - tão poucos! -
que queiram ver para além delas.

6/12/2008

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Fotografia: Isabel Solano

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Tempo


Tece a teia
a tecedeira
atenta
a cada fio
que cruza
tem nos dedos
toda a vida
que à alma
se recusa

1/12/2008

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Fotografia: Isabel Solano

domingo, janeiro 25, 2009

Apenas folhas caídas

Leaves me confused

São apenas folhas caídas
em mil cores que o vento sopra
tantas outras despedidas
de verdes que outrora foram

São apenas folhas caídas
no empedrado das ruas
ou na terra humedecida
por entre árvores nuas

São apenas folhas caídas
por outras que irão nascer
e entregam-se coloridas
que pouco importa morrer

30/11/2008

Luísa Veríssimo, in Mais Poemas, inédito, 2008
Fotografia: Isabel Solano

Este país que o mar não quer


MORTE AO MEIO-DIA

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra os vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país de sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é para comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta à gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

Ruy Belo, in "Boca bilingue", Todos os Poemas - 1, 2ª ed., Assírio & Alvim, 2004.
Foto: Isabel Solano