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sábado, fevereiro 16, 2008

Escrevo no intervalo da sombra


A SOMBRA DE UMA FACE
A FACE DE UMA SOMBRA

Há uma face que não sei,
que não sou.
E o que sou é a face de uma sombra.
Escrever para essa sombra sem face.

Sou uma sombra sem face
na sombra da rua.
Escrevo nesse intervalo,
nessa sombra onde ninguém suspira,
onde ninguém passa,
onde ninguém me vê passar,
onde não passo,
onde vou passar.

Há uma face
página onde a sombra se fez face
frente à sombra.
Escrever contra a face sem face.

Escrever acender na sombra
árvores
mover a sombra até ao céu da rua.

Caminhar na sombra desatar a sombra
uma sombra uma face

Escrever é abrir na sombra uma sombra
e respirar na sombra
um corpo de sombra.

Ninguém nos vê nem nos verá jamais.

Respirar a sombra viva.

António Ramos Rosa, in "A construção do corpo", A Palavra e o Lugar, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
Foto: Isabel Solano

1 comentário:

R de Regina disse...

Escrever é abrir na sombra uma sombra
e respirar na sombra
um corpo de sombra.

Vou levar comigo só um pouquinho já devolvo:-)