O homem da fotografia
ainda me fita hoje
como num primeiro dia
que nem sei situar:
o mesmo gesto, o mesmo semi-sorriso
os mesmos olhos sem viço.
Deve ter sido há muito tempo
essa primeira vez que me viu,
o homem da fotografia,
sem que eu lhe desse importância,
sem ver sequer que ali estava.
Comecei a notar realmente
o homem da fotografia
provavelmente muito depois
de ele me começar a observar.
Pela persistência daquele olhar
desentendido, desinteressado,
porém fixado, ali, do alto da fotografia,
como se nada quisesse,
como se não visse apesar de olhar.
O homem da fotografia foi ficando
e só por ali estar, parado, a mirar,
acabou por entrar no meu percurso quotidiano.
Passei por aquela rua
distraída, em rotina adormecida,
centenas, talvez milhares, de vezes.
E nem a rua,
que subi e desci todos os dias,
nem a rua
se agarrou tanto ao meu pensamento
como finalmente o fez
o homem da fotografia.
Habituei-me a vê-lo ali, dia após dia,
e já nem me lembro da rua
sem aquele semi-sorriso
do homem da fotografia,
sem aqueles olhos sem viço
que me fitam hoje como nesse primeiro dia,
que não sei dizer quando seria.
Amanhã vão tirá-lo dali,
ao homem da fotografia.
Outro cartaz virá.
Um banco, um supermercado, talvez.
O homem da fotografia
vai deixar de me olhar
como todos os dias fez.
Amanhã a rua
do homem da fotografia
vai estar tão vazia.
Fevereiro de 2007
Luísa Veríssimo, in A Ponta Mentos, inédito, 2007
Foto: Isabel Solano
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